Marcelo
Luís de Souza Ferreira
Não sei se vocês têm a mesma sensação que eu, mas para mim
alguma coisa há de muito errado nos dias de hoje.
Essa sensação muito me angustia, me entristece e me consome por
dentro.
Uma passada de olhos pelos jornais, um pouco de televisão, uma
conversa com um taxista ou um passeio pela internet é o suficiente
para que essa sensação reapareça e persista. Afinal, as notícias
não são nada boas!
A violência e a maldade humanas parecem ter chegado ao extremo do
seu limite e agora começa a nos cercar. É como se já tivéssemos
iniciado uma contagem regressiva até o momento de sermos nós mesmos
as vítimas.
Será que estou sendo drástico demais? Veja por si mesmo.
Não há quem não tenha tido um amigo ou parente brutal e
estupidamente assassinado nos últimos anos.
Não há quem não viva ou não conviva com a depressão, um dos
males mais comuns atualmente.
Não há quem não conheça de perto o drama de alguém que se
perdeu nas drogas.
Não há quem não conheça várias famílias desagregadas com seus
membros arrasados e perdidos no mundo.
Todas essas coisas estão muito próximas e por onde se procura
encontra-se tudo menos a felicidade autêntica e duradoura.
As manchetes anunciam pais e filhos se matando, pessoas planejando e
executando assassinatos em massa aleatoriamente, gente se juntando
cada vez mais para cometer os crimes mais bárbaros e absurdos.
Nenhum temor a absolutamente nada (nem à possibilidade de passar o
resto da vida na cadeia)... nenhum respeito à vida, que hoje é
tirada por uma mera confusão no trânsito.
E assim vamos nos acostumando com as frias estatísticas, que
reduzem cada pessoa a um ínfimo número quase imperceptível. Vamos
nos tornando também imperceptíveis.
O curioso disso tudo é que talvez experimentemos nos dias atuais
nosso momento de maior liberdade e glória: o ser humano é tudo!
Ao menos em nosso país muitas pessoas que antes passavam fome
melhoraram consideravelmente seu poder aquisitivo nos últimos anos e
agora têm acesso a bens materiais dos mais diversos. As pessoas
podem se cuidar, tratar da beleza física e da saúde e, além disso,
defende-se por todo canto que as pessoas devem buscar a sua
felicidade individual, elevando-se a satisfação pessoal a um
patamar supremo: “nada nem ninguém pode te impedir de ser feliz,
de se realizar pessoalmente”.
Hoje, portanto, se as instituições sociais tradicionais cerceiam
de alguma forma essa liberdade individual, elas já não nos servem,
mudemo-las ou simplesmente acabemos com elas, pois tornaram-se
defasadas, retrógradas, anacrônicas!
Se a família impede o indivíduo de se expressar por completo é
porque ela já não nos serve mais. Então, vamos reformatá-la,
desconstruí-la, desvalorizá-la.
Se a escola tolhe o indivíduo com suas regras e fiscalizações,
mudemos nosso modelo de escola dando total autonomia ao aluno.
E se algo ou alguém representa autoridade em nossas vidas, vamos
desconstituí-lo, pois submissão e autoridade são palavras que
impedem o ser humano de exercer plenamente sua liberdade natural. E o
ser humano individualmente considerado está acima de todas as
coisas...virou seu próprio deus.
É isso que embasa muitas bandeiras atualmente. E a mídia reforça
minuto a minuto essa ideia: “o casamento não vai bem, se separe
pois ninguém é obrigado a permanecer preso numa relação infeliz”;
“os filhos te impedem de satisfazer suas vontades, deixe-os e vá
fazer o que te dá prazer”; “os pais não te deixam fazer nada,
dê o seu grito de liberdade e saia de casa”; “seu patrão te
chateia, saia do emprego e busque algo melhor”; “ninguém é de
ninguém”; “se te der vontade, faça, experimente”.
As telenovelas, os programas de entrevistas, os seriados, os
desenhos, os jornais, as revistas... todos apontam a plena liberdade
de expressão individual como a chave para uma sociedade mais justa e
feliz.
Esse é o discurso vigente e é o que tem nos comandado: a busca
pelo prazer individual e a garantia da ampla liberdade de cada ser.
Há um paradoxo, contudo.
Ora, se essa é a ordem do dia e se essa liberdade é o que se tem
procurado garantir a todo custo, por que o ser humano parece estar
cada vez mais infeliz? Por que as pessoas têm demonstrado cada dia
menos respeito e amor pelo próximo? Por que as pessoas se destroem,
cometem tantos assassinatos e suicídios, e revelam um nível de
insatisfação que se intensifica a cada dia?
Alguma coisa está errada! A conta não fecha. O resultado não bate
com a operação praticada.
Basta uma mera análise dos fatos, a comparação entre o grau de
avanço dessa ideologia vigente e o nível de satisfação das
pessoas para perceber que alguma coisa está mesmo muito errada.
Basta um pouquinho de vontade de raciocinar para perceber que
compramos e vivemos um discurso falho.
E precisamos ter a coragem de reconhecer: estamos nos iludindo!
Vamos pensar juntos então.
A mídia que reforça tanto a ideia de liberdade do ser humano, da
garantia de ser livre para fazer suas escolhas é a mesma mídia que
nos diz como devemos ser, como devemos nos portar, o que devemos
fazer e o que devemos ter. E é interessante como essas determinações
nos colocam no caminho de coisas e situações que tendem a nos
prejudicar.
É ela que dita um padrão de beleza inatingível, em nome do qual
muitas pessoas morrem desnecessariamente, se propondo a ser aquilo
para o que seu próprio organismo está preparado. Isso sem contar os
comportamentos patológicos como bulimia e anorexia, que hoje atingem
até crianças.
Nas telenovelas, filmes e seriados o que mais vemos é a
desvalorização de todos aqueles que não se enquadram nesse padrão
de beleza. Ataca-se diretamente a autoestima das pessoas
fomentando-se a busca pelo príncipe encantado (prioritariamente
capaz de satisfazer todos os desejos materiais da mulher) ou pela
irreal princesa de conto de fadas, com medidas milimetricamente
aferidas e sem problemas hormonais. Não há espaço no mundo real
para a pessoa real e haja depressão a ser enfrentada!
Nesse mesmo meio se questiona a instituição familiar tradicional
e se apresentam formas alternativas de famílias. O casamento é
descrito como uma prisão. A satisfação pessoal de cada cônjuge é
colocada acima de todos os demais interesses familiares, inclusive
acima da formação de um ambiente saudável e harmônico com a
superação das diferenças existentes em benefício de um interesse
comum. A fidelidade é apresentada como algo desnecessário e
ultrapassado. O amor entre os membros da família é relegado a
segundo plano... e isso tudo quando os estudiosos apontam a
desagregação e a desestrutura familiar como uma das principais
causas do alto índice de criminalidade encontrado nas cidades
contemporâneas.
Ao mesmo tempo em que se procura desmerecer a fidelidade conjugal,
pugna-se por uma liberdade sexual absoluta, trazendo inclusive as
crianças para esse universo de forma precoce e impensada, com a
defesa do sexo sem compromisso, da multiplicidade de parceiros e da
diversidade da prática sexual como mera expressão da personalidade
humana, encobrindo-se os graves problemas das doenças sexualmente
transmissíveis, da pedofilia que tem se alastrado apesar de todo o
combate promovido pelas autoridades constituídas, da gravidez
indesejada e das crianças abandonadas ou mantidas sem a menor
assistência material ou psicológica. Pior ainda: pregamos a total
liberdade sexual, mas nos revoltamos com a espantosa quantidade de
mães solteiras e filhos abandonados pelos pais, muitas vezes
dependentes dos programas assistenciais governamentais, além de
termos aversão e relegarmos à marginalidade os que se prostituem e
aqueles que se contaminam com doenças sexualmente transmissíveis.
Vemos ainda reforçada a cada dia a ideia de que somos aquilo que
podemos adquirir com o nosso dinheiro, através do que nos empurram
coisas absolutamente desnecessárias mas que passam a definir o nosso
lugar na sociedade, o nosso valor. Em contrapartida, sofremos
diariamente com os males decorrentes da cobiça e da ganância, que
dão ensejo à corrupção, à malversação do bem público, a
roubos e a latrocínios.
Por fim, para não alongarmos a conversa além do possível, esse
discurso de liberalidade, antropocêntrico e hedonista é totalmente
contrário ao reconhecimento da existência de Deus e por não
conseguirmos conviver com a ideia de um Deus regendo nossas vidas, um
Senhor ao qual deveríamos servir e prestar obediência, elegemos
dentre nós nossos próprios ídolos, com base em valores efêmeros
(quem tem mais dinheiro, o que tem o melhor carro, a pessoa mais
eloquente, a “mulher fruta”, o cantor de sucesso), e, pasmem, os
seguimos e adoramos, mesmo sabendo que tais ídolos são eleitos com
a mesma rapidez com que são por nós destruídos e descartados,
assim como que muitos desses nossos ídolos desistirão de viver cedo
demais, simplesmente por não aguentar a própria vida!
Não há nisso tudo um contrassenso assustador?
Pelo caminho que estamos tomando e pelo grau de deterioração do
próprio homem creio que está passando da hora de despertarmos para
essa realidade. Reconhecer o que, como vimos, salta aos olhos.
O discurso falhou!
A proposta de liberdade que compramos na verdade é um pacto de
escravidão!
Não somos o que queremos ser. Aliás, nem sabemos o que queremos
ser e servimos àquilo que nos destrói.
A nossa tentativa de remodelar a sociedade de modo que nada se
posicionasse acima do interesse individual de cada um apenas
demonstra o quanto somos falíveis e imperfeitos.
Por meio dessa tentativa, as pessoas passaram a se ver como objetos
e a usar umas às outras sem notar que do outro lado há sempre um
outro ser humano, com as mesmas buscas, dores e frustrações.
Nos tornamos ainda mais confusos com a nossa própria identidade.
Não sabemos mais quem somos e na busca por uma autodefinição nos
perdemos.
Corremos desesperadamente atrás de coisas que o próprio tempo se
incumbirá de levar, revelando que afinal todo aquele empenho fora em
vão. E sabemos disso!
Sabemos tanto que lutamos agora para viabilizar mecanismos de fuga
dessa realidade indigesta que nós próprios criamos. Queremos
legalizar drogas, como se tivéssemos o direito de obter um
passaporte para outro mundo já que conseguimos estragar esse em que
vivemos. E brigamos por isso sem nem ao menos ter a intenção de
olhar e ouvir aqueles inúmeros seres que lutam incessantemente para
tentar se libertar dos vícios já adquiridos. Com isso de certa
forma dizemos: “Não importa! Qualquer outra coisa é melhor do que
o que estamos vivendo ” (mas não estamos vivendo a liberdade que
tango almejamos?).
Pagamos para ter toda essa ilusão. E pagamos muito! Basta ver
quanto lucram os meios de comunicação, a indústria da beleza, os
produtores de bebida e de cigarros, sem contar os narcotraficantes
espalhados pelo mundo.
Pagamos e não ganhamos nada de bom em troca. É chegada a hora de
acordar!
Precisamos pensar, raciocinar. Deixar de comprar todo esse discurso
falso e ilusório, calcado na exagerada promoção do prazer
individual, que já não se dá sequer ao trabalho de mascarar sua
contradição e que está nos levando à própria destruição.
Precisamos firmar posição e não nos deixar corromper. Não
podemos mais ser usados por algo que não nos traz qualquer benefício
real.
Precisamos reconhecer nossos erros e nossas limitações: não somos
deuses e na grandiosidade desse universo que ocupamos não temos
poder algum, nem mesmo sobre nossas próprias vidas.
Precisamos entender que estamos nos tornando o que não queremos
ser, que causamos sofrimento a nós mesmos em função da nossa
arrogância e do nosso egoísmo, e que temos nos dissociado cada vez
mais de qualquer ideal de humanidade.
Precisamos perceber, enquanto há tempo, que há sim um outro
caminho, ainda acessível embora difícil de ser trilhado. E
precisamos pegá-lo.
Precisamos urgentemente lembrar que temos um Pai esperando, pronto
para nos perdoar e cuidar das nossas vidas como jamais conseguiremos
cuidar por nós mesmos. E que para chegar a esse Pai o único caminho
é o Filho, que por enquanto ainda nos aguarda de braços abertos.
Marcelo, li o texto inteiro com atenção. Concordo em boa medida com suas angústia e compartilho dela. Não estou certo sobre a solução que vc aponta. Mas tb não estou certo de nada que se pareça com solução. Pelo seu texto, tenho a impressão que vc ainda deposita esperanças no ser humano. Bacana. Valorizo isso. Só não sei se compartilho. Acho que já lhe disse certa vez (porque digo isso a todo mundo - rs) que não é por acaso que somos a única espécie de hominídeos que anda sobre a face da terra. Quando o homo sapiens encontrou outras espécies, identificou a competição bem mais rápido e as eliminou com a eficiência que temos para eliminar o que quer que esteja em nosso caminho... Enfim, a conversa é longa, dolorosa se levada muito a sério, mas proveitosa. Ainda mais com vc!! Abração!
ResponderExcluirNey, meu querido amigo.
ExcluirVocê é uma pessoa a quem muito admiro. Pelo caráter, pela ética e pelo companheirismo que pude atestar durante o período em que convivemos. Já disse e repito: sinto saudades da 17ª Região, você em especial.
Bem conheço nossas divergências filosóficas e, embora estejamos nesse aspecto em posições diametralmente opostas, sei que no que concerne ao tema abordado estamos ligados por um ponto em comum, o que pode ser percebido através dessas angústias e constatações compartilhadas. De início, isso é o que importa.
No entanto, por experiência pessoal direta, diária e cada vez mais intensa hoje eu tenho certeza quanto à solução apontada, porém não acredito que haja tanta esperança assim para o ser humano (outro paradoxo, não?)... mas estou certo de que isso será objeto de nossas conversas futuras, longas, "amenas" e sempre proveitosas.
Um forte abraço.
Marcelo meu querido amigo. com sua sensibilidade ímpar vc resumiu toda a minha angustia diante desses "pos-modernos" tempos em que estamos vivendo. sua sensibilidade lhe confere posição de destaque dentre nós, mortais . obrigada pelo compartilhamento . e que deus nos proteja sempre. bj em vc e na familia querida. E venham logo nos visitar. Ana Paula Faria
ResponderExcluirAna Paula, minha querida amiga.
ExcluirQue saudades! E que bom que o texto lhe agradou.
Espero poder encontra-los em breve.
Olá, Dr. Marcelo. Adorei o texto e confesso que já fiz tais reflexões inúmeras vezes. Conheço muitas pessoas que pensam da mesma forma e sofrem as mesmas aflições. Por isso ainda não perdi a fé no ser humano e na sua capacidade de amar e de deixar-se amar por Deus. Um grande abraço da Letícia Mendes.
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