Aquela seria a noite que mudaria toda a sua vida e de alguma forma
ele pressentia isso.
Por conta de um sonho de vida, muita coisa já havia sido feita.
Alguns acertos, alguns erros.
Lá atrás, quando tudo começou, havia a promessa e a expectativa de
que ele chegaria longe. “Esse menino está destinado ao sucesso”
era o que sua mãe havia ouvido e lhe transmitira, de modo que o
caminho para as grandes conquistas já povoavam sua imaginação
desde muito novo.
Assim, em sua mente ele tentava imaginar como mudar as coisas, como
reverter situações adversas, como executar aquilo para o que
entendia estar fadado. E dessa forma, absorveu a ideia de que deveria
aproveitar todas as oportunidades e, quando essas não aparecessem,
deveria ele próprio criá-las.
E desse jeito foi. Na primeira oportunidade que vislumbrou de tomar o
posto de alguém (no caso, esse alguém era seu irmão mais velho),
usou dos artifícios escusos que possuía para marcar sua posição
de superioridade.
Mais tarde, com o auxílio da própria mãe, ludibriou seu pai,
obtendo dele algo que entendia ser seu de direito.
Mas isso tudo teve um custo. Suas ações repentinas e impensadas
geraram a fúria de seu irmão e o fizeram fugir, deixar toda sua
história naquele local para preservar a própria vida.
Isso lhe vinha à mente naquela noite, anos e anos depois.
A imagem da fuga, os negócios celebrados no meio do caminho e as
tentativas de obter sucesso a qualquer custo.
E de fato houve algum avanço. De alguma forma inexplicável, o pior
não tinha acontecido ao longo dessa jornada. Pelo contrário, de
alguma forma inexplicável as coisas até que pareciam ter dado
certo. Algo parecia colocar as coisas no rumo sempre que ele parecia
ter perdido tudo.
Uma família havia sido construída, embora não da forma planejada
ou desejada. Os negócios prosperaram, apesar de todos os reveses
experimentados e de todas as investidas sofridas (a maioria de seu
próprio sogro). Havia bens, muitos bens. E havia muitos empregados.
Mas também havia toda uma vida deixada para trás, no momento da
fuga, e a sensação de que toda aquela conquista não serviria para
nada se ele não estivesse no lugar certo, se ele não pudesse voltar
para a casa do pai.
Assim, ele pegou suas coisas, juntou sua família e decidiu voltar,
percorrendo o longo caminho do retorno.
A caminhada deve ter sido dura. Não tanto pela distância. Deve ter
sido dura pela carga carregada.
Sobre suas costas não estavam apenas os bens e as pessoas que
transportava. Estavam todos os erros cometidos ao longo do caminho,
que, a essa altura, se acumulavam a cada passo dado. Estavam as
tentativas de trapacear, de lucrar a qualquer custo, de obter sua
satisfação pessoal ou seu prazer acima de qualquer coisa.
O peso aumentava e naquela noite era necessário se desfazer desse
fardo. Ele sabia disso. Sabia que a caminhada de volta não seria
possível com tanto peso nas costas. Sabia que somente ele poderia
fazer algo para reduzir toda essa carga.
Por isso, fez com que sua família passasse adiante e decidiu
permanecer sozinho no vale por toda aquela noite. Decidiu enfrentar
ali, de uma vez por todas, aquilo que o atormentava tanto. Decidiu
olhar para o espelho e permitir que a luz trouxesse à tona tudo o
que ele realmente era, mas teimava em esconder. Decidiu estar na
presença de Deus.
E naquele exato momento em que o trapaceiro decidiu enxergar o que
era e enfrentar sua condição miserável, Deus se fez presente.
No início desse confronto houve muita resistência. Houve luta,
embate físico e dor. Uma briga que parecia interminável entre um
homem e Deus.
Deus poderia tê-lo exterminado a qualquer momento, assim como
poderia ter impedido que toda aquela caminhada torta de vida tivesse
chegado até ali. Mas essa não era a Sua vontade. Não era Sua
vontade terminar com a vida ignóbil daquele pequeno ser.
Então, Deus permitiu que aquele homem lutasse, esgotasse suas forças
tentando fazer de si um vencedor até que terminasse por entender,
com toda essa luta, a dimensão da sua imperfeição e da sua
fragilidade.
Quando isso ocorreu, aquele trapaceiro enxergou a verdade que mudaria
toda a sua vida: não se tratava dele, de seus valores, de seus
esforços. Tratava-se do amor e da graça de Deus por Ele. Tudo
girava em torno desse amor e dessa graça.
Ele era apenas um trapaceiro. Um homem com caráter defeituoso, que
havia enganado seu próprio irmão e seu próprio pai. Que havia
tentado de todas as formas ser algo por conta própria e percebeu que
as coisas simplesmente não estavam sob o seu controle. Ele era
apenas mais um ser desprezível, incompreensivelmente amado por um
Deus único e pleno em poder, santidade e glória.
Encarar essa imagem no espelho foi difícil e ele relutou por uma
noite inteira. Mas enxergar a graça o fez desejá-la mais do que à
sua própria vida. E aquele homem deixou de querer lutar com Deus e
decidiu agarrá-Lo. Decidiu abraçar a graça com todas as suas
forças e não deixá-la perdida. Decidiu se render a Deus e se
colocar sob os Seus desígnios infalíveis.
Naquele momento, Jacó, o trapaceiro, ganhou um novo nome: Israel. E
Israel, o príncipe que prevaleceu após ter lutado com Deus, pôde
retornar à casa do pai e ver como Deus (não mais as forças do
próprio Jacó) o levaria a ser o grande patriarca para o qual estava
destinado desde seu nascimento.
Israel não se tornou perfeito. A história nos mostra que sua
natureza defeituosa ainda iria lhe colocar em situações difíceis
até o final de sua vida.
Mas o fato de Israel deixar de lutar com Deus e se permitir ser
guiado pela graça o levou a perceber, no final dos seus dias, que
Deus havia realizado em sua vida tudo aquilo que havia sido prometido
no início. A missão estava cumprida (não por ele, mas pela graça
que o acompanhava) e ele poderia descansar tranquilamente ao lado do
Pai.
Eu, você e Jacó, o trapaceiro. Se prestarmos atenção veremos que
há uma esperança, única, nos aguardando no vale.
Então, por que lutar tanto?
(Gênesis 26-50)
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