segunda-feira, 9 de junho de 2014

UM TRAPACEIRO NO VALE (ainda sobre “O Espelho e Graça)


Aquela seria a noite que mudaria toda a sua vida e de alguma forma ele pressentia isso.
Por conta de um sonho de vida, muita coisa já havia sido feita. Alguns acertos, alguns erros.
Lá atrás, quando tudo começou, havia a promessa e a expectativa de que ele chegaria longe. “Esse menino está destinado ao sucesso” era o que sua mãe havia ouvido e lhe transmitira, de modo que o caminho para as grandes conquistas já povoavam sua imaginação desde muito novo.
Assim, em sua mente ele tentava imaginar como mudar as coisas, como reverter situações adversas, como executar aquilo para o que entendia estar fadado. E dessa forma, absorveu a ideia de que deveria aproveitar todas as oportunidades e, quando essas não aparecessem, deveria ele próprio criá-las.
E desse jeito foi. Na primeira oportunidade que vislumbrou de tomar o posto de alguém (no caso, esse alguém era seu irmão mais velho), usou dos artifícios escusos que possuía para marcar sua posição de superioridade.
Mais tarde, com o auxílio da própria mãe, ludibriou seu pai, obtendo dele algo que entendia ser seu de direito.
Mas isso tudo teve um custo. Suas ações repentinas e impensadas geraram a fúria de seu irmão e o fizeram fugir, deixar toda sua história naquele local para preservar a própria vida.
Isso lhe vinha à mente naquela noite, anos e anos depois.
A imagem da fuga, os negócios celebrados no meio do caminho e as tentativas de obter sucesso a qualquer custo.
E de fato houve algum avanço. De alguma forma inexplicável, o pior não tinha acontecido ao longo dessa jornada. Pelo contrário, de alguma forma inexplicável as coisas até que pareciam ter dado certo. Algo parecia colocar as coisas no rumo sempre que ele parecia ter perdido tudo.
Uma família havia sido construída, embora não da forma planejada ou desejada. Os negócios prosperaram, apesar de todos os reveses experimentados e de todas as investidas sofridas (a maioria de seu próprio sogro). Havia bens, muitos bens. E havia muitos empregados.
Mas também havia toda uma vida deixada para trás, no momento da fuga, e a sensação de que toda aquela conquista não serviria para nada se ele não estivesse no lugar certo, se ele não pudesse voltar para a casa do pai.
Assim, ele pegou suas coisas, juntou sua família e decidiu voltar, percorrendo o longo caminho do retorno.
A caminhada deve ter sido dura. Não tanto pela distância. Deve ter sido dura pela carga carregada.
Sobre suas costas não estavam apenas os bens e as pessoas que transportava. Estavam todos os erros cometidos ao longo do caminho, que, a essa altura, se acumulavam a cada passo dado. Estavam as tentativas de trapacear, de lucrar a qualquer custo, de obter sua satisfação pessoal ou seu prazer acima de qualquer coisa.
O peso aumentava e naquela noite era necessário se desfazer desse fardo. Ele sabia disso. Sabia que a caminhada de volta não seria possível com tanto peso nas costas. Sabia que somente ele poderia fazer algo para reduzir toda essa carga.
Por isso, fez com que sua família passasse adiante e decidiu permanecer sozinho no vale por toda aquela noite. Decidiu enfrentar ali, de uma vez por todas, aquilo que o atormentava tanto. Decidiu olhar para o espelho e permitir que a luz trouxesse à tona tudo o que ele realmente era, mas teimava em esconder. Decidiu estar na presença de Deus.
E naquele exato momento em que o trapaceiro decidiu enxergar o que era e enfrentar sua condição miserável, Deus se fez presente.
No início desse confronto houve muita resistência. Houve luta, embate físico e dor. Uma briga que parecia interminável entre um homem e Deus.
Deus poderia tê-lo exterminado a qualquer momento, assim como poderia ter impedido que toda aquela caminhada torta de vida tivesse chegado até ali. Mas essa não era a Sua vontade. Não era Sua vontade terminar com a vida ignóbil daquele pequeno ser.
Então, Deus permitiu que aquele homem lutasse, esgotasse suas forças tentando fazer de si um vencedor até que terminasse por entender, com toda essa luta, a dimensão da sua imperfeição e da sua fragilidade.
Quando isso ocorreu, aquele trapaceiro enxergou a verdade que mudaria toda a sua vida: não se tratava dele, de seus valores, de seus esforços. Tratava-se do amor e da graça de Deus por Ele. Tudo girava em torno desse amor e dessa graça.
Ele era apenas um trapaceiro. Um homem com caráter defeituoso, que havia enganado seu próprio irmão e seu próprio pai. Que havia tentado de todas as formas ser algo por conta própria e percebeu que as coisas simplesmente não estavam sob o seu controle. Ele era apenas mais um ser desprezível, incompreensivelmente amado por um Deus único e pleno em poder, santidade e glória.
Encarar essa imagem no espelho foi difícil e ele relutou por uma noite inteira. Mas enxergar a graça o fez desejá-la mais do que à sua própria vida. E aquele homem deixou de querer lutar com Deus e decidiu agarrá-Lo. Decidiu abraçar a graça com todas as suas forças e não deixá-la perdida. Decidiu se render a Deus e se colocar sob os Seus desígnios infalíveis.
Naquele momento, Jacó, o trapaceiro, ganhou um novo nome: Israel. E Israel, o príncipe que prevaleceu após ter lutado com Deus, pôde retornar à casa do pai e ver como Deus (não mais as forças do próprio Jacó) o levaria a ser o grande patriarca para o qual estava destinado desde seu nascimento.
Israel não se tornou perfeito. A história nos mostra que sua natureza defeituosa ainda iria lhe colocar em situações difíceis até o final de sua vida.
Mas o fato de Israel deixar de lutar com Deus e se permitir ser guiado pela graça o levou a perceber, no final dos seus dias, que Deus havia realizado em sua vida tudo aquilo que havia sido prometido no início. A missão estava cumprida (não por ele, mas pela graça que o acompanhava) e ele poderia descansar tranquilamente ao lado do Pai.
Eu, você e Jacó, o trapaceiro. Se prestarmos atenção veremos que há uma esperança, única, nos aguardando no vale.
Então, por que lutar tanto?
(Gênesis 26-50)

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